Os perigos do formol

A substância é ilícita. Isso, por si só, é motivo mais do que suficiente para bani-la dos salões. Ponto. Para além da proibição, no entanto, já não restam dúvidas: o produto químico pode provocar câncer. Todo eles fazem tudo sempre igual: com pequenas variações no método, lavam o cabelo da cliente com xampu antirresíduos, secam, aplicam uma mistura de defrisante, queratina líquida e formol, escovam com secador e passam a chapinha bem quente.

Isso, no mínimo, uma vez ao longo do expediente. Sim, esse é um assunto que diz respeito diretamente a você, cabeleireiro. Lamentamos informar: quem se expõe durante toda a jornada de trabalho, mês após mês, aos vapores do formaldeído, o outro nome da substância química usada na técnica da escova progressiva, integra o grupo de risco para desenvolver um câncer.


Se você duvida desse potencial cancerígeno e dá de ombros, achando que há um certo exagero quando o assunto é o mal afamado formol, aceite nossa sugestão: faça uma busca no Pubmed – base virtual de dados bibliográficos, que pertence ao governo americano e armazena artigos científicos de todo o planeta. Tida como a mais séria da medicina, ela registra nada menos do que 2.484 artigos sobre a relação entre formol e câncer!

Os antenados nas notícias internacionais sobre procedimentos estéticos perguntariam: “Como existem tantos estudos se a técnica brasileira de alisamento foi exportada há pouco tempo?” Ocorre que há décadas o formol é largamente utilizado nos mais diversos setores da indústria – da fabricação de celulose à de tintas e corantes, passando por resinas, espelhos e desinfetantes.

Um dos trabalhos mais recentes sobre a questão, publicado em maio de 2009 no Journal of the Nacional Cancer Institute, a prestigiada revista do Instituto Nacional do Câncer nos Estados Unidos, dá conta de que os operários da indústria expostos a altos níveis de formol tiveram maior probabilidade de morrer de vários tipos de câncer de sangue e do sistema linfático, principalmente leucemia, do que os que não tinham tido contato com a substância. Foi um trabalho de fôlego: durou 40 anos e pesquisou 25 mil trabalhadores.

Por outros caminhos


“A tendência mundial é que o formaldeído seja substituído por compostos menos tóxicos”, acredita Ubirani Otero, epidemiologista do Instituto Nacional do Câncer (Inca), na área de vigilância do câncer ocupacional e ambiental. “O formol é extremamente tóxico”, confirma outro expert no assunto, José Tarcísio Buschinelli, toxicologista da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho que faz pesquisa científica e tecnológica relacionada à saúde e à segurança do trabalhador. “Dizer que a substância irrita o sistema respiratório é pouco. Ela é cancerígena. E, embora não exista uma quantidade mínima de exposição capaz de pôr a saúde em risco, quanto maior o contato com o produto, maior a probabilidade de se desenvolver a doença, sobretudo na região da boca e do pescoço.” Isso, porém, não significa que o pouco contato com o formaldeído afaste o perigo.

Com a autoridade de quem vem estudando o tema há anos, Ubirani informa que não existe limite aceitável de exposição. “Mesmo os profissionais do salão que não aplicam o produto, assim como a clientela que não se submete ao procedimento e só quer fazer as unhas, por exemplo, podem ser afetados pelos vapores voláteis do formol.”

Os efeitos agudos dessa exposição, como dores de cabeça, vertigem, falta de ar, irritação nos olhos, no nariz, nas mucosas e no trato respiratório, sem falar em edema pulmonar, dependem da concentração da substância e da sensibilidade individual, mas são praticamente imediatos. Já os crônicos, caso do câncer, têm um período de latência grande, isto é, os sintomas demoram a aparecer. “Essa técnica de alisamento é relativamente nova”, pondera Buschinelli. “Ainda não é possível relacionar a doença ao produto usado nos salões. Daqui a alguns anos, quando surgirem novos casos de câncer, é provável que se investigue se esses pacientes se expuseram ao formol.”

Segundo Cristiano Guedes Duque, oncologista clínico do Inca, a chance de uma pessoa exposta a uma substância química desenvolver um câncer depende da quantidade a que ela é exposta e do tempo de contato. “A maior parte dos estudos que demonstraram a ação cancerígena do formol incluiu pessoas expostas durante pelo menos um ano”, afirma. “Em geral, o câncer demora de dez a vinte anos, a partir do início da exposição, para se desenvolver. Assim, quando o tumor surge, muitas vezes a pessoa já parou de ter contato com a substância há muito tempo.” completa.

As reclamações sobre o cheiro forte, característico do formol, levaram a um subterfúgio que só mascara o problema: a utilização de aromatizantes para disfarçar o odor. “Não se deixe enganar nem engane sua cliente”, adverte Buschinelli. “Isso é pura maquiagem. O perigo continua no ar, só que perfumado.”

Segundo o toxicologista, os profissionais dos institutos de beleza, que manuseiam produtos com uma composição química muito forte, são sérios candidatos a sofrer mutações no material genético, o que pode favorecer algum tipo de câncer, sobretudo o de bexiga.

Provas e mais provas


Um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) confirma a tese: esses trabalhadores são duas vezes mais suscetíveis a danos em seu material genético do que o resto dos mortais. Matéria veiculada pela Agência USP de Notícias trouxe à tona um estudo pioneiro da bióloga Maira Precivalle Galiotte. Sob a orientação da pesquisadora Gilka Gattás, ela estudou 160 mulheres – 80 delas profissionais de salões de beleza na cidade de São Paulo. As outras 80, que não trabalham no setor, formaram o grupo denominado controle.

A partir das amostras de sangue, foram realizados dois testes. O do Micronúcleo mostrou, na primeira turma de voluntárias, o dobro de alterações cromossômicas, indicando, portanto, a exposição a agentes carcinógenos. O do Cometa, assim chamado porque os danos no material genético formam uma espécie de cauda, também flagrou nas profissionais da beleza regiões em que o DNA sofreu algum tipo de mutação. Ou seja, alterações mais significativas foram encontradas nas trabalhadoras da área. Que fique claro: apresentar mutações no DNA não significa que o câncer vá se instalar obrigatoriamente, mas sim que o risco de que a doença venha a se desenvolver é maior.

Mal sem fronteiras

Os Estados Unidos lideram as pesquisas sobre os malefícios do produto químico. À frente das investigações, está o IARC, sigla em inglês para International Agency for Research on Cancer (Agência Internacional para Pesquisa em Câncer). Esse órgão – que pertence à Organização Mundial de Saúde (OMS) – coordena e conduz pesquisas sobre as causas do câncer humano, os mecanismos da carcinogênese e o desenvolvimento de estratégias científicas para prevenir e controlar a doença. Então, é bom levar a sério a conclusão do grupo de trabalho, formado por 26 cientistas de 10 países: o formaldeído é carcinogênico para humanos. “O que até 2004 não passava de mera probabilidade ganhou, desde então, comprovação”, conta o epidemiologista Ubirani Otero.

O tipo de câncer mais associado à substância é o de nasofaringe, que abrange as fossas nasais e os seios da face. Mas o IARC também aponta fortes evidências da relação entre o formaldeído e a leucemia, agora reforçada pelo estudo publicado no Journal of the Nacional Cancer Institute. Sem nenhuma sombra de dúvida, a substância química – alerta o IARC – é teratogênica, isto é, leva a malformações fetais.

Outras instituições de pesquisa norteamericanas, relacionadas no site do Inca, também enfatizam o peso das evidências nocivas do formol: a Agência de Proteção Ambiental (EPA), a Associação de Saúde e segurança Ocupacional (OSHA) e o Programa Nacional de Toxicologia (Fourth Annual Report on Carcinogens).

Fenômeno de popularidade também nos Estados Unidos, a técnica de realinhamento dos fios, que por lá atende pelo nome de BKT, sigla para Brazilian Keratin Treatment, já preocupa os médicos. O método ainda não foi proibido pela FDA, a Food and Drug Agency, agência que controla com rigor remédios e alimentos. “É uma questão de tempo”, opinou a dermatologista

Ellen Murmur, que trabalha no Centro Médico Monte Sinai de Nova York, referência mundial em estudo e tratamento do câncer, em entrevista à rede CBS. “Os riscos não se restringem ao momento da aplicação”, explicou. “Há uma suspeita de que o formaldeído tenha efeito cumulativo sobre os fios e que vá sendo liberado a cada lavagem.” Como bem diz o oncologista Cristiano Guedes Duque, “insistir em usar o produto pode ter conseqüências trágicas.”

 Segurança para todos


Poucas mulheres insatisfeitas com a cabeleira que a genética lhes deu escapam do apelo dos fios lisos, lisos. Ok, nada contra domar cachos rebeldes e volumosos. No entanto, melhor fariam elas se, orientadas pelo cabeleireiro de confiança, recorressem aos ativos alisantes permitidos pela legislação: o ácido tioglicólico ou um dos hidróxidos – de sódio, potássio, cálcio, lítio e guanidina. Do ponto de vista químico, o formaldeído não se enquadra nessa categoria. Por isso foi proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de ser usado com essa finalidade.

A lei é clara. Promulgada em 17 de junho de 2009, a resolução RDC nº 36 proíbe a exposição, a venda e a entrega ao consumo de formol ou formaldeído (solução a 37%) em drogaria, farmácia, supermercado, armazém e empório, loja de conveniência e drugstore. “No Rio de Janeiro, a Lei nº 5.409, de 18 de março deste ano, tornou obrigatória a exibição de cartaz nos salões de beleza de todo o Estado com o aviso de que o uso do formol é terminantemente proibido”, conta a epidemiologista Ubirani Otero. “Os demais governadores deveriam seguir esse exemplo, que reforça a legislação federal.”

Por lei, o formol só é permitido como agente endurecedor de unhas e como conservante de formulações, no limite máximo de 0,2%. A adição nesses níveis deve ser feita durante o processo de industrialização. Acrescentar a substância ao produto cosmético pronto, seja qual for a concentração, configura adulteração, prática considerada como crime hediondo pelo Código Penal Brasileiro.

O dermatologista Luiz Carlos Cucê, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, defende o banimento puro e simples do formaldeído, mesmo nos teores autorizados por lei. “Ele causa irritação até mesmo nos cascos dos cavalos. Por isso deveria ser substituído pelo azuleno, que também é conservante, porém muito menos sensibilizante.”

Embora os Centros de Vigilância Sanitária recebam inúmeras denúncias sobre problemas causados por cosméticos, fiscalizar os salões com o devido rigor é inviável. Estabelecimentos de grande, médio e pequeno porte pipocam do Oiapoque ao Chuí. E muitos, sem alvará de funcionamento, atuam na clandestinidade. Sem contar os de fundo de quintal, que atendem basicamente a vizinhança. “Muitos trabalham na informalidade, sem carteira assinada”, salienta Álvaro Frigério Paulo, médico que atua em segurança e saúde no trabalho.

A dermatologista Rosana de Castilho Magalhães, especialista em medicina ocupacional, é outra que aponta a dificuldade de controle e propõe uma reflexão: “O formol ameaça principalmente a saúde da pessoa que manipula a substância. Vale a pena pôr a própria vida em risco para embelezar outras pessoas?” Mais um motivo para que os trabalhadores do setor lutem pela regulamentação da profissão, o que levaria à criação de normas de funcionamento dos institutos de beleza.

Enquanto isso não acontece, recuse-se a utilizar o formol mesmo que a cliente insista. Sua saúde e a de todos agradecem.